Classes, forças armadas e golpe de Estado
Causou grande repercussão, no último sábado (14/12) a prisão do general da reserva, antigo membro do Alto Comando do Exército, Walter Souza Braga Netto. Este, já aparecera no inquérito “Contra Golpe” da Polícia Federal como um dos principais articuladores da trama sediciosa, cujo Quartel General foi o próprio Palácio do Planalto, entre janeiro de 2019 e janeiro de 2023 –isto é, da posse de Bolsonaro até a intentona galinha-verde de 8 de janeiro –, ou seja, durante todo o mandato do ex-capitão/pseudo deputado/ocioso profissional. No plano “Punhal Verde e Amarelo”, redigido por outro general, Mário Fernandes, Braga Netto chefiaria ao lado de Augusto Heleno a junta militar que governaria o Brasil até a convocação de novas eleições, talvez daqui a vinte e um anos. Agora, segundo depoimento do tenente-coronel-delator Mauro Cid, Braga Netto teria não só centralizado todas as informações referentes ao plano como financiado as suas movimentações clandestinas, visando o assassinato de Alexandre de Moraes, Alckmin e Lula.
É certo que o fato de os mandantes do plano golpista começarem a serem enviados para a prisão (destacadamente vários generais e oficiais superiores das Forças Armadas), é situação inédita na história republicana brasileira e indicativo da gravidade dos atos preparatórios perpetrados por estes bandidos fascistas.
Sobre as razões do seu fracasso, salta aos olhos, em primeiro lugar, que o núcleo duro das classes dominantes brasileiras fechou questão, por ora, contra o golpe de Estado. Quem não se lembra do pronunciamento da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por exemplo, em julho de 2022, em defesa da “democracia”? Sob o capitalismo, o golpe reacionário será sempre uma possibilidade quando sobrevenha o perigo da revolução; na verdade, para combatê-la, mesmo os Estados burgueses mais “democráticos” preveem a utilização dos dispositivos de guerra interna, desde legislações anti-terrorismo até a decretação de Estado de Sítio. Mas não se pode confundir o papel das Forças Armadas como medula e salvaguarda do Estado moderno em geral com a banalização do seu emprego nas disputas entre classes e frações de classe ou com a ideia de que elas seriam um corpo homogêneo e monolítico, situado acima das classes e da política. A disputa entre distintos setores das classes dominantes repercute, como não poderia deixar de repercutir, no interior das forças armadas, grosso modo, entre a corrente democrático-liberal de um lado e a corrente fascista de outro. Não ver deste modo é cair na visão idealista (e politicamente oportunista) de superestado¹. Do que se trata aqui não é de um apego moral às liberdades democráticas por parte daqueles setores, e sim que o regime parlamentar é a forma mais natural e mais adequada à dominação de classe da burguesia (e do seu aliado histórico, o latifúndio) em condições normais. Os próprios golpistas reconhecem isto, quando enunciam que seria muito mais difícil consumar o crime após o pleito, quando pairaria sobre o outro campo a legitimidade de ter sido eleito2. Estas coisas são o abecê e são ao mesmo tempo cruciais, pois as divisões nas classes dominantes constituem reservas importantes da revolução. Sem tais divisões, na verdade, o crescimento e triunfo de forças revolucionárias inicialmente débeis seria impossível.
Qual corrente prevalecerá no seio das forças armadas dependerá, aqui como em cada caso, sempre da situação e da correlação de forças concretas, e estão destinados ao ridículo os falsos profetas que cravarem que a sua aliança será sempre na posição mais extremada: se fosse assim, teria vencido não apenas o golpe de 22, que chegou a ter um quinhão do Alto Comando, como também outras tantas quarteladas ocorridas ao longo do século XX – e se é certo que algumas venceram, houve ainda mais que foram frustradas – porque no fim das contas as forças armadas não são um ente com vontade própria, mas um instrumento de dominação de classe. Há situações particulares em que um “messias”, fardado ou não, possa ser colocado acima das classes e concentre de modo absoluto o poder? Pode, mas elas pressupõem uma grave comoção revolucionária e um equilíbrio de forças na sociedade, quando a reação já não tem forças para governar da maneira parlamentar habitual e o povo ainda não tem a capacidade de derrubá-la. Nesse caso, tendem a surgir os “salvadores da pátria”, com autonomia inclusive para fazer certas concessões imediatas ao movimento de massas, como forma de dividir a mobilização popular e restabelecer a ditadura inequívoca sobre as massas. Esse fenômeno foi estudado por Marx como bonapartismo e aconteceu muitas vezes na América Latina sob a forma do populismo (não como cópia, naturalmente). Para a reação, sobretudo seus setores mais politizados, este é um remédio amargo e uma situação perigosa, pois ela arrisca perder o controle em favor de elementos nada confiáveis, que defendam um projeto de poder próprio, inclusive com uma forte base pequeno-burguesa que visa usar o aparelho de Estado a favor da sua própria ascensão agressiva. Falando sobre as condições em que se deu a vitória do fascismo na Europa, dizia Dimitrov:
“Mas a característica da vitória do fascismo é precisamente a circunstância de que esta vitória mostra, por um lado, a debilidade do proletariado, desorganizado e paralisado pela politica divisionista social-democrata de colaboração de classe com a burguesia, e, por outro lado, revela a debilidade da própria burguesia, que tem medo que se realize a unidade de luta da classe operária, teme a revolução e não está em condições de manter sua ditadura sobre as massas com os antigos métodos da democracia burguesa e do parlamentarismo.”3
Esta situação estava plenamente dada no Brasil em finais de 2022? A resposta é não: se é certo que havia uma briga intestina pelo controle do centro do aparelho de Estado, estava ausente o perigo iminente da revolução, razão pela qual os principais setores da grande burguesia e do chamado “agronegócio” – e os seus capatazes fardados – recusaram a cantilena golpista. A reunião em torno de um governo Lula fraco, acossado por um Congresso reacionário, associada à intervenção enérgica do Supremo Tribunal Federal (STF), lhe parecem por enquanto suficientes, e mesmo as mais adequadas vias, de implementação de seu programa de reformas antipopulares e contenção de qualquer comoção social. O veto explícito da administração ianque ao golpe em marcha durante e após as última eleições presidenciais ao mesmo tempo refletiu e confirmou a posição predominante no seio das classes dominantes locais; foi um fator decisivo, mas de maneira nenhuma o único, como temos insistido. O que teria ocorrido se o governo fosse Trump, é exercício de “passadologia”, irrelevante para caracterizar o fenômeno concreto tal como se apresentou realmente, que é o único objeto da análise política. O que se pode dizer sem dúvida diante dos fatos é que tanto o STF como a Polícia Federal (esta última, dirigida pelo governo federal) se apressaram para assestar o máximo de golpes possíveis sobre Bolsonaro antes que Trump tome posse.
Fechada a questão, interessa ao atual comando das Forças Armadas, notadamente do Exército, a prisão de algumas cabeças golpistas e a sua entrega aos leões. Visa-se com isso, de um lado, recuperar o controle hierárquico dos generais sobre o conjunto da tropa (controle pelo menos perturbado por anos de pregação incessante dos fascistas), e de outro lado conferir um véu de legalidade e legitimidade às suas ações perante a sociedade, do tipo “ninguém está acima da lei”. O que não passa de uma mentira sem qualquer fundamento, haja vista os indecentes privilégios que esta casta (principalmente os seus oficiais) segue tendo em contraste com o conjunto da sociedade – a qual, vivendo na miséria, sustenta o sistema de saúde e previdenciário especial dos militares –, ademais de seu papel político ativo como “tutores” da república desde o golpe militar que a constituiu em 1889, de que a raivosa doutrinação anticomunista e anti-popular feita nos quarteis é um componente crucial que segue inalterado.
Isto dito, significa que o perigo golpista desapareceu? É claro que não. E aqui não nos referimos apenas aos princípios, pois, como já dissemos, é claro que, diante da ameaça revolucionária, mesmo os estados capitalistas mais estáveis preveem nas suas constituições o emprego do exército contra o povo sublevado. Tratamos do caso concreto: de um lado, a extrema-direita segue tendo influência de massas, é uma força não só eleitoral como socialmente relevante, com larga base civil e considerável influência no meio militar. De outro lado, a relativa estabilização política iniciada no pós-8 de janeiro de 2023, que tem na fraqueza do governo uma suas das razões, por mais paradoxal que isso pareça (e já Engels dizia que as verdades científicas são paradoxais), que se dá às custas do enfraquecimento e desmobilização do movimento de massas, não pode ser mais do que um fenômeno passageiro. Também há o fator externo, marcado pela ascensão de forças de extrema-direita em vários centros importantes e acirramento da disputa imperialista por hegemonia, que repercute nos países dominados através das pugnas entre as distintas frações de classe e grupos de poder domésticos. O Brasil viveu entre junho de 2013 e 8 de janeiro de 2023 uma década de crise econômica e política continuada, aguda em alguns momentos, e se ela já foi suficiente para gestar um golpe fracassado, não se pode surpreender o potencial explosivo da próxima crise que já amadurece sob a aparente normalidade.
A verdade amarga é que, em que pese os esforços de militantes dedicados, nesta última década as forças ao menos verbalmente comprometidas com a transformação revolucionária da sociedade fracassaram em transformar a insatisfação popular contra a ordem vigente em efetiva mobilização e elevação da sua consciência, que foi em parte capturada pela extrema-direita ou neutralizada pela política de apaziguamento lulista. Entender cientificamente as causas deste fracasso momentâneo e nos libertarmos dos desvios e concepções mortas que se provaram incapazes de compreender e modificar a realidade – pela prática subjetivista de substituir a análise concreta em favor da fraseologia revolucionária – é a primeira condição para aprender da experiência anterior e saltar à frente no futuro. Do ponto de vista tático, às forças populares e revolucionárias cabe cumprir duas tarefas: robustecer sua organização (o que inclui, além da construção própria, o estabelecimento de frentes de luta para vencer o isolamento e potenciar sua capacidade de intervenção) e ampliar seus vínculos com as massas, para não desperdiçarem, outra vez, as grandes oportunidades históricas que surgirão com tanta certeza como a sucessão das novas estações. Se o golpismo segue latente, também persiste a necessidade da revolução, que desperta por sua vez nos setores politicamente mais ativos a consciência da revolução e a ação revolucionária prática. Há muito fermento e energia revolucionários disponíveis, é urgente mobilizá-los!
Novo MEPR
15 de dezembro de 2024
1 “Se bem a burguesia compradora tem a hegemonia e o imperialismo a avaliza, existem no próprio governo posições da burguesia burocrática amparadas por grupos dentro das Forças Armadas; e se dão ataques e contra-ataques que seguirão se desenvolvendo, não ver assim é ter critério de estado monolítico, de superestado”. Camarada Gonzalo, “Que o equilíbrio estratégico remexa mais o país”, Peru, 1992. É exatamente esta visão monolítica de superestado que tem marcado a “análise” política dos editores do jornal A Nova Democracia acerca do papel das Forças Armadas, confundindo seu papel estrutural de medula do Estado (comum a todo e qualquer Estado) com a centralização absoluta da vida política nacional (o que só ocorre, mesmo no Brasil, em casos excepcionais). Ora, se assim não fosse, por que seria necessário aos militares conspirar para empalmar o poder político?
2 É o que diz Lênin, em “O Estado e a revolução”: “A onipotência da ‘riqueza’ também está mais segura numa república democrática porque não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político do capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro possível para o capitalismo, e por isso o capital, depois de se ter apoderado… deste invólucro, que é o melhor, alicerça o seu poder tão solidamente, tão seguramente, que nenhuma substituição, nem de pessoas, nem de instituições, nem de partidos na república democrática burguesa abala este poder.” (V.I. Lênin, “O Estado e a Revolução”, 1917 – seção III, O Estado, instrumento de exploração da classe oprimida, grifos do autor). Aqui, há uma demarcação decisiva da política marxista da reformista, que confunde a necessidade de mobilizar ativamente as massas em defesa das suas liberdades democráticas concretas, contra os fascistas, com a defesa da democracia burguesa em geral, fazendo do movimento popular um mero apêndice da burguesia liberal contrarrevolucionária.
3 G. Dimitrov, “A luta pela unidade da classe operária contra o fascismo”, VII Congresso da Internacional Comunista, 1935.