28 de janeiro de 2025
A situação internacional, de que avulta a posse e os primeiros atos da gestão de Trump, aponta para uma decadência do imperialismo norte-americano, razão pela qual este se torna mais militarista, mais agressivo e mais opressor dentro e fora de suas fronteiras. A emergência de fortes movimentos de extrema-direita, alguns dos quais abertamente neonazistas, em vários países capitalistas centrais, como na própria Alemanha – é difícil imaginar algo mais sintomático –, neste último caso, encorajados pelo humanoide Elon Musk, indica a indissociabilidade entre a reação interna e a preparação de uma nova rodada de guerras imperialistas pela nova partilha do mundo num futuro já distinguível, isto é, anos e não décadas. Ao mesmo tempo, a escalada de agressões e achincalhes atiçam o ódio das massas, sobretudo no Terceiro Mundo, mas também nas próprias metrópoles imperialistas, como ocorre nestes dias devido às cenas horripilantes das prisões e deportações em massa nos Estados Unidos; aguçam seu sentimento nacional e indicam rebeliões igualmente sem precedentes no horizonte. Aos revolucionários, o problema do manejo correto da frente única – unindo todas as forças populares suscetíveis de se unirem contra o fascismo, o racismo e o militarismo reacionários – e da constituição de forças proletárias independentes que lutem pela hegemonia nesta frente, apresentam-se como tarefas complexas e urgentes.
Quem pretenda ver qualquer tendência a um “apaziguamento” realmente se mostra incapaz de compreender o que se passa. As cenas de caça às bruxas aos imigrantes que vêm dos Estados Unidos são talvez inéditas (quiçá comparáveis apenas ao mccarthismo, nos anos de 1950) quanto ao ambiente de arbítrio policial e violação básica de direitos, associadas à ampla delação na qual vizinhos denunciam vizinhos, levando todo o tecido social a um esgarçamento inédito, em muitos aspectos similar ao ocorrido na Alemanha nazista. É claro que num primeiro momento, isto tende a criar um terror paralisante sobre as massas que são alvo do furor reacionário, mas logo haverá reações proporcionais aos arbítrios cometidos, até porque todos sabem a que resultados conduz o uso explicitamente político das polícias: ao abuso em toda linha, contra alvos específicos a princípio mas logo descontroladamente. Ainda está fresca na memória mundial a lembrança do assassinato atroz de George Floyd em 2020, e a onda de indignação e protestos igualmente mundiais que a ele se seguiu. Esses mesmos Estados Unidos do qual sopram os ventos pestilentos do novo fascismo também presenciaram entre 2023 e 2024 ocupações de universidades e manifestações gigantescas em favor da Palestina. Essas pessoas existem, são muitas milhares e milhões e logo entrarão em cena novamente. É esta a dialética da luta de classes que um revolucionário não pode jamais perder de vista, ainda, e talvez sobretudo, nos momentos mais difíceis.
Há ainda a economia. Sem a abundante oferta de mão-de-obra barata ofertada pelos imigrantes indocumentados, os Estados Unidos se arriscam ver diante de uma crise no fornecimento de serviços, base da sua economia parasitária e deteriorada, que se tornou de potência industrial em mera “recortadora de cupons”, do mesmo modo como ocorreu com a Inglaterra no começo do século XX. A perseguição aos imigrantes e o “tarifaço” contra produtos importados tendem a elevar e não a reduzir o custo de vida dentro dos Estados Unidos, embora esta tendência seja compensada pela atitude predatória diante dos recursos naturais, como a extração desenfreada de petróleo. Aqui também se nota o caráter profundamente decadente e reacionário representado pelos valores evocados por Trump e a extrema-direita. O fato de que o discurso em defesa do “livre comércio” – elevado a dogma religioso pelos papas da Escola de Chicago e imposto militarmente, por exemplo, ao Leste Europeu após a falência da União Soviética, com as catástrofes sociais de proporções bíblicas subsequentes – tenha sido substituído pelo protecionismo e uso das tarifas como instrumento de agiotagem nas mãos de Trump também significa que os Estados Unidos já perderam capacidade competitiva pelas vias puramente econômicas, restando-lhes apenas o apelo à lei do mais forte e coação dos demais países. É a confirmação, numa escala mundial, da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, que não pode deixar de desembocar em guerras que, pela força, façam ceder as relações internacionais atualmente vigentes ao novo quadro econômico realmente existente.
Aqui, é mister destacar o papel da China social-imperialista como uma potência emergente. Em 2000, a participação da China no PIB global (em dólares correntes, segundo o poder de paridade de compra) era de 7%, contra 30% dos Estados Unidos; chegou a 13% em 2010 contra 23% dos Estados Unidos e a 18% em 2022 contra 24% da participação norte-americana. É um crescimento exponencial da economia chinesa, ao qual se acrescenta seu papel de maior produtor mundial de manufaturados e o segundo maior exportador de armamentos, somente atrás dos Estados Unidos. Ocorre que dizer da China que ela é uma potência imperialista emergente significa dizer que ela está obrigada a disputar a hegemonia mundial sob pena de involuir para uma relação de vassalagem que tornaria insuportável a sua já delicada situação doméstica, marcada pela contradição entre o capitalismo voraz e as massas operárias e camponesas espoliadas brutalmente, de um lado; e no seio das classes dominantes, entre velha burguesia (era nova na época de Teng) associada ao aparelho estatal e a nova burguesia privada que açambarca cada vez mais poder econômico e aspira a ter maior poder político, de outro lado. Este “pacto social” entre novos e velhos burgueses no seio do governo chinês precisa da exportação de capitais em escala planetária para se pagar, mas essa exportação é seriamente constrangida pelo dólar como moeda mundial e outros mecanismos fundamentalmente militares, ou seja, extraeconômicos, com que o imperialismo norte-americano mantém os seus privilégios de superpotência, que já não se sustentam na sua real capacidade produtiva. E é claro que este dique não irá se romper a não ser pela força, como disse sem rodeios Trump ainda durante a campanha eleitoral, ao afirmar que “se perdermos o dólar como moeda mundial, acho que isso seria o equivalente a perder uma guerra.”
Quanto ao caráter igualmente agressivo e predatório deste novo imperialismo chinês, basta ver as rebeliões que têm ocorrido numa série de países africanos e asiáticos contra o modelo tipicamente semicolonial que envolve as instalações do megaprojeto do “Cinturão e Nova Rota da Seda”: os países tomam emprestados recursos chineses para financiar obras de infraestrutura que beneficiarão a cadeia produtiva chinesa, seus trabalhadores recebem os piores empregos nestes projetos e todos os cargos qualificados são ocupados por técnicos chineses, acostumados a lidar despoticamente com os trabalhadores no seu próprio país. O caráter desses países como mero fornecedores de produtos primários é reforçado, e não atenuado. No campo político, as disputas entre os antigos e os novos amos têm produzido uma sucessão de golpes ou tentativas de golpes de Estado (no continente africano, apenas em 2023, foram oito). Só vigaristas a soldo –e eles campeiam nas fileiras ditas “progressistas” – podem pretender ver neste “capitalismo com características chinesas” algo que não seja simplesmente uma típica relação imperialista de pilhagem e opressão nacional.
Neste cenário, ocorre a formação de alianças e eixos transitórios, já bem definidos por Lênin, no seu trabalho clássico sobre o imperialismo, quando assinalava que “alianças pacíficas preparam o terreno para guerras, e por sua vez crescem a partir de guerras”, acrescentando que “uma condiciona a outra, produzindo formas alternadas de luta pacífica e não-pacífica em uma e mesma base.” Neste sentido, a sentença de Trump de fazer os “Estados Unidos grandes de novo”, que na prática significa fazer a roda do mundo girar para trás, é uma impossibilidade tanto econômica quanto política, e ao fim do seu ciclo –de quatro anos no mínimo, mas não se pode descartar a ocorrência de um golpe branco para mantê-lo mais tempo no poder –o mais provável é que a hegemonia norte-americana se veja ainda mais enfraquecida, em favor da aliança hoje encabeçado por China e Rússia, mas principalmente a China, que tem todas as condições de se valer do protecionismo e visão de mundo a um só tempo obstinada e obtusa de Trump para ampliar sua penetração econômica e influência política, em nome do “multilateralismo”, em novos mercados, incluída a América Latina, o que já ocorre na prática.
Por enquanto, a onda de descontentamento social cuja origem são as crises estruturais do capitalismo – como as de 2008-2009 ou a estagflação que assola os países centrais ou “em desenvolvimento” desde a Corona-crise – tem sido catalisada por uma extrema-direita fascista reativada, em parte por mudanças importantes na própria base sobre a qual está está organizada, ou melhor, desorganizada e fragmentada, a força de trabalho. Um enorme semiproletariado, “uberizado”, que vê o colega de profissão como um competidor direto e não tem nenhuma experiência de trabalho coletiva, é particularmente sensível ao discurso “empreendedor” e “moralizador” evocado pelos fascistas, assim como (este é o caso dos países imperialistas) uma aristocracia operária decadente receosa de perder o padrão de vida obtido sob a égide do “Estado de bem estar social”. Quem imaginar que o chauvinismo não tenha capacidade de enganar temporariamente as massas e arrastá-las a apoiar agressões contra outros povos ou minorias internas, não aprendeu nada da experiência histórica. A questão é que estas forças se realizam e ao mesmo tempo se esgotam em tais guerras de agressão, pois o horror e o choque econômico delas resultantes, sobretudo para os perdedores destas guerras – e quem pode se julgar de antemão vencedor? – são mais persuasivos e esclarecedores do que quaisquer slogans, embora estes sejam naturalmente também muito importantes. Na ausência de um país socialista, nossa situação atual se parece, nesse ponto, mais à da Primeira que a da Segunda Guerra Mundial, e aqui é oportuno recordar as claras exigências formuladas por Lênin a respeito. É por isso que a posição de princípio dos comunistas numa eventual nova guerra imperialista é a de recusar a defesa de um bloco imperialista contra o outro, bem como a recusa da “defesa da própria pátria”, ainda que um dos bandoleiros se apresente como “humanista”, “democrático” ou mesmo “anti-imperialista” – de resto, quando foi que os agressores não se apresentaram assim? De sorte que termos como “eixo da resistência” para se referir a uma das alianças em conformação sob direção de alguma potência, se toleráveis em sentido figurado (afinal, mesmo a imprensa burguesa o menciona, mas isso também é bastante sintomático), de modo algum podem ser tomados como uma categoria analítica marxista. Se a guerra de partilha é congênita ao imperialismo, também lhe são congênitas as guerras de libertação nacional e as revoluções sociais.
Quem poderia prever quando rebentará, e onde, o incêndio, ou o acúmulo de incêndios, que interromperão este longo e doloroso ciclo de contrarrevolução? Só pessoas que aprenderam as palavras de ordem marxistas de cor, e as repetem como prestidigitadores, poderiam pretender realizar tais profecias. O que podemos dizer com certeza é que a guerra imperialista amadurece sobre a base comum do próximo ciclo revolucionário, que é a própria decomposição, parasitismo e agonia do sistema como um todo. Seria ademais necessário agregar que o trabalho de organização e agrupamento das forças da revolução, ainda que limitado, em parte pelas nossas debilidades e concepções equivocadas (que devemos varrer impiedosamente de tempos em tempos), em parte pelo que o velho Hegel chamaria de “espírito do tempo” – em linguagem marxista, as condições históricas vigentes num período específico, bem como os valores hegemônicos e blocos políticos que se formam sobre a sua base –, não fica à espera do momento exato para começar, mas ocorre desde já, e se alimenta da luta real das massas, única fonte possível para sua sobrevivência. Luta-se em qualquer contexto, afinal: a distinção entre uma época de contrarrevolução e de revolução não é a existência das lutas e a possibilidade de vitórias parciais em pontos específicos (porque a vida social, como uma partícula da vida em geral, se processa de maneira desigual), e sim pelo alcance que estas podem atingir, pela sua capacidade ou não de abalar um dado estado de coisas no seu conjunto, incluída aí a fissura no interior da superestrutura governante.
Portanto, só pessoas que têm uma visão completamente deturpada desta ciência social chamada marxismo podem confundir uma avaliação objetiva da correlação de forças num dado momento com qualquer justificativa da apatia ou da desorganização, pois um marxista sério os considera inaceitáveis em quaisquer circunstâncias. Na verdade, um revolucionário deve ser perseverante e, como dizem repetidamente os camaradas maoístas indianos (eles próprios envolvidos em uma grande luta, cruenta, complexa e encarniçada), capaz de encontrar “condições favoráveis dentro de situações desfavoráveis”. Quando a situação oportuna aparece, as forças revolucionárias devem estar em condições de golpear no lugar exato, para recuperar em dias ou semanas o terreno que lhes foi tomado nos longos e dolorosos anos “pacíficos”. Se se mostram incapazes de cumprir esta tarefa, têm duas alternativas: ou reconhecem-no honestamente e fazem autocrítica, ou serão atropeladas pelas forças novas, porque a revolução na sociedade costuma ser precedida de abalos – na forma de cismas e confrontações abertas – no interior do próprio pensamento revolucionário.
Comitê Pró-Revista.