A história, como a natureza, é um processo sem autor. Ela não obedece a um plano geral, a qualquer providência ou finalidade. O que não que dizer, bem entendido, que o processo histórico não possua seus invariantes relativos, as leis internas que determinam seu curso.
Estas leis são justamente o que existe de universal no processo histórico, dando a ele tendências consistentes e globais. O paradoxo, no entanto, é que as tendências globais do processo histórico só existem na medida em que são exprimidas, atualizadas ou encarnadas por indivíduos singulares. É através destes indivíduos singulares que a história age. Se a história não tem um autor, ela certamente tem atores.
Estes atores podem executar funções absolutamente diversas e de importância desigual no processo histórico, a depender dos fatores mais variados, mas, sobretudo, de sua capacidade de intervenção no processo histórico. Esta capacidade de intervenção não é outra coisa que não o modo pelo qual estes atores interpretam seus papéis e exprimem o desenvolvimento dos processos históricos. A importância desta interpretação singular depende da capacidade do indivíduo em questão intervir em determinados problemas históricos. É através destas intervenções que o processo histórico coloca e supera seus próprios problemas.
É justamente neste sentido que podemos falar da importância global de certos indivíduos, na medida em que, como atores, que contribuíram para a resolução de problemas ou impasses do processo histórico e puderam servir como meios para abrir ou encerrar uma certa época histórica. É neste sentido que os comunistas cultivam a memória de uma série de indivíduos, como aqueles que por sua intervenções práticas transformaram as situações históricas em que se inseriam (p.ex.: Rosa Luxemburgo, Fred Hampton, Pedro Pomar e tantos outros). É neste sentido que a história das ciências mantém, igualmente, a memória de uma série de indivíduos, como aqueles que por suas intervenções teóricas transformaram os quadros de referência das formas de produção do conhecimento (p.ex.: Galileu, Saussure, Gödel etc.).
Existem, além disso, certos casos em que as duas linhas se cruzam, em que certos indivíduos transformam as situações históricas por suas intervenções práticas e transformam os quadros de referência das formas de produção do conhecimento por suas intervenções teóricas. Estes casos estão reservados àqueles indivíduos que, além de atuarem como militantes comunistas, atuaram também como teóricos que transformaram os conceitos de referência da ciência da história (bem entendido: a ciência do processo histórico das sociedades de classes).
Estes indivíduos são aqueles que marcam as épocas do desenvolvimento teórico do materialismo histórico, épocas que são determinadas por mudanças que não apenas fazem esta ciência avançar, acrescentando a ela novos conhecimentos, mas mudam a sua maneira de colocar e responder aos problemas práticos e teóricos. A sua intervenção não apenas acrescentou conceitos básicos ao materialismo histórico mas mudou o próprio conjunto de problemas que ela coloca. No caso do marxismo, isto é particularmente notável por se vincular a uma classe explorada específica –o proletariado – e porque o seu “laboratório” é a própria atividade revolucionária voltada a fazer mudar radicalmente as circunstâncias.
O primeiro destes é, certamente, Marx, o descobridor. Marx, grande dirigente da luta proletária na Europa do século XIX, nos deixou os conceitos fundamentais pelos quais a ciência da história é produzida (relações de produção, modo de produção etc.) ao mesmo tempo em que situou essencialmente a produção desta ciência no campo de experimentação da luta de classes. Analisando de maneira rigorosa as leis de funcionamento do modo de produção capitalista, Marx descobre as tendências que o desestabilizam continuamente através dos processos de proletarização.
Esta descoberta leva Marx à tese de que o problema da luta de classes no capitalismo só pode ser resolvido pela ditadura do proletariado, um acontecimento que marca a transição estrutural do modo de produção capitalista ao modo de produção comunista. O quadro de referência teórico marxista, no entanto, encontra um impasse na medida em que se confronta com uma nova realidade, a problemática prática do imperialismo.
O segundo destes indivíduos é, certamente, Lênin. Lênin, o grande dirigente da Revolução Russa, produz uma série de conceitos fundamentais que transformam o modo pelo qual a ciência da história opera (o poder soviético, a teoria do imperialismo etc.), fazendo-a avançar para responder à nova problemática prática encontrada. Lênin estabelece as condições práticas (o Partido de novo tipo, o centralismo democrático etc.) pelas quais o proletariado pode intervir ativamente na luta de classes e na resolução dos problemas históricos colocados pela crise do capitalismo.
O quadro de referência teórico marxista-leninista, no entanto, encontra um impasse na medida em que se confronta com uma nova realidade, a problemática prática da transição socialista. O terceiro destes indivíduos é, certamente, Mao. Mao, grande dirigente da Revolução Chinesa, se depara com os impasses enfrentados pelo proletariado durante a transição ao comunismo. Em especial, Mao se depara com o fato de que a luta de classes continua sob a ditadura do proletariado.
Ela continua não apenas na forma das sobrevivências da antiga burguesia como classe, mas na reprodução da ideologia capitalista e do próprio modo de funcionamento da divisão do trabalho capitalista que podem fazer surgir uma nova burguesia no interior do processo de transição socialista. Esta nova burguesia tende a se apresentar debaixo da bandeira do marxismo, formando a base material para o surgimento do revisionismo moderno que, desde o golpe que se seguiu à morte de Mao em 1976, orienta a República Popular da China (RPC).
Estes impasses exigem de Mao a invenção, a partir das experiências concretas das massas chinesas, de novos meios para fazer avançar a transição, invenções desenvolvidas pela experimentação na luta de classes ao longo de toda a Revolução Chinesa.
Mao busca prolongar a linha leninista em uma nova problemática, produzindo novas formas de organização proletárias que avancem na instituição do controle das massas sobre o poder político de maneira a consolidar o caráter socialista do processo de transição. Ele desenvolve uma nova teoria militar proletária, a Guerra Popular Prolongada, que busca solucionar não apenas o modo de desenvolvimento da luta pelo poder nas formações sociais coloniais e semicoloniais, dominadas pelo imperialismo, como o modo de integração direta das massas no uso e no controle da violência revolucionária, estabelecendo as bases para a resolução do problema das relações entre a guerra e a democracia operária.
Além disso, a teoria da Guerra Popular é inseparável da necessidade de que, durante a guerra de tomada pelo poder, os comunistas estabeleçam bases de apoio nas quais iniciem desde já o processo de revolucionar o modo de vida das massas ao mesmo tempo em que se buscam a satisfação de seus interesses imediatos, estabelecendo comunas populares que organizem as massas politica, econômica e culturalmente para a defesa e o avanço da Revolução.
O dirigente chinês, além disso, retorna às formulações de Lênin sobre o Partido e ao mesmo tempo as faz avançar, levando às últimas consequências o princípio dialético da lei da contradição como motor do processo da matéria e também, por decorrência, da sociedade e do Partido. Desenvolveu o princípio da luta de duas linhas e do centralismo democrático, vencendo limitações que, por diversas razões, se haviam difundido no partido bolchevique e na Internacional Comunista após o desaparecimento de Lênin.
Com isso, a teoria leninista do centralismo democrático é desenvolvida pela teoria da luta de duas linhas, que afirma que a consolidação de uma linha proletária e revolucionária no Partido só pode ser o resultado de um amplo debate democrático e que a delimitação e a crítica das ideias burguesas deve ter como condição esta luta ideológica desenvolvida nos limites das relações entre camaradas. Assim, a organização proletária pode chegar a uma situação em que exista tanto centralismo quanto democracia, tanto disciplina quanto iniciativa das bases. Além disso, Mao inicia um processo de balanço da experiência soviética em todos os campos que, sem abandonar seus avanços, reconhece e indica seus limites e erros.
Mao critica o dogmatismo, o burocratismo, o subjetivismo, o empirismo e o estilo clichê que haviam se tornado a cultura comum de muitos segmentos do movimento comunista. Ele desenvolve, como resposta a estes problemas, o método de direção da linha de massas. Segundo sua elaboração, a linha de massas é o método pelo qual o Partido investiga entre as massas as ideias corretas, que se encontram ali de maneira fragmentada e dispersa, as reúne e sistematiza para posteriormente retornar com estas ideias às massas. Assim, as massas podem verificar na prática o valor de verdade destas ideias por sua adesão a elas e sua justeza. A linha de massas estabelece, assim, o eixo principal, ainda que não exclusivo, da relação democrática entre o Partido e as massas.
Mao desenvolve também a teoria da Frente Única Revolucionária, afirmando que em formações sociais heterogêneas, em que coexistem diversas classes, como as dominadas pelo imperialismo, a luta pela Revolução e pela abertura da transição socialista exige uma aliança entre as diversas classes dominadas e oprimidas pelo imperialismo. Esta aliança, no entanto, só pode ter um conteúdo revolucionário e, portanto, conquistar seus objetivos, na medida em que estiver sob a direção ideológica do proletariado, sob sua hegemonia.
Além disso, Mao dirigiu a Grande Revolução Cultural Proletária (GRCP), orientando suas linhas gerais. Percebendo o desenvolvimento do revisionismo no interior do Partido Comunista e o crescimento de sua influência ideológica na formação social chinesa, Mao convoca um amplo movimento de massas para criticar e retificar o Partido e o aparelho de governo da República Popular da China.
Este movimento, que foi a própria GRCP, tinha o objetivo estratégico de derrotar os efeitos da ideologia burguesa não apenas no domínio cultura, mas nas formas de organização da vida política e econômica. Para derrotar estes efeitos, a GRCP convocou a formação de novos órgãos de poder surgidos “desde baixo” pelos quais as massas deveriam regular o aparelho de governo, lutando contra sua burocratização.
Com o desenvolvimento da GRCP, as massas percebem que seus objetivos só podem ser conquistados quando estes órgãos de poder substituem os velhos órgãos burocráticos, aliando a direção ideológica do Partido ao controle das massas. Os novos órgãos de poder devem “aplicar um sistema de eleição geral semelhante ao da Comuna de Paris”; suas listas de candidatos “devem ser propostas pelas massas revolucionárias depois de amplas consultas e as eleições só terão lugar depois de repetidas discussões destas listas pelas massas”.
Neles, “as massas têm o direito de criticar a qualquer momento os membros” destes órgãos de poder e “se se mostrarem incompetentes, os ditos membros e representantes podem ser substituídos por eleição ou revogados pelas massas depois de discussão”. Eles deveriam ser desenvolvidos não só nos estabelecimentos de ensino e nos organismos do poder proletário, “mas também, no essencial, nas fábricas, minas e empresas, nos bairros das cidades e nas aldeias”.
Estes órgãos, que tomaram forma na Comuna de Xangai e, posteriormente, nos Comitês Revolucionários, foram a grande vitória e a grande invenção da GRCP, demonstrando as formas de poder pelas quais a transição socialista deve avançar e o meio pelo qual o revisionismo deve ser combatido.
É por isto que hoje se afirma que a formulação mais avançada do materialismo histórico tem como quadro de referência teórica o marxismo-leninismo-maoismo. Assumir esta posição não quer dizer retomar dogmaticamente todas as afirmações de Mao, ou ignorar que suas elaborações tenham limites, alguns objetivos, do tempo e do país específicos em que ele viveu.
Estes limites devem ser analisados rigorosamente pelos comunistas, em especial em sua relação com a derrota temporária da Revolução Chinesa e a vitória do revisionismo e a posterior restauração capitalista. Assumir esta posição quer dizer, isto sim, recolher os conceitos fundamentais elaborados por Mao e a maneira pela qual respondem à problemática da transição socialista, como os pontos mais altos alcançados pela experiência teórica e prática do movimento comunista. Como ele mesmo insistia, aprender dos clássicos não é copiar tudo o que eles disseram, mas apreender a sua posição, ponto de vista e o seu método.
Só assim podemos honrar o nome de Mao e luta para estar à altura do comunismo, como movimento real que abole o atual estado de coisas. A herança de Mao conduz, hoje, a nova época da revolução proletária. É por isso que ainda nos lembramos e nos lembraremos de Mao como um grande descobridor de caminhos, é por isso que o saudamos em seu eterno nascimento.
Comitê Pró-Revista, 26 de dezembro de 2024, no 131° aniversário de nascimento do Presidente Mao.