Foto: REUTERS/Folhapress/Ricardo Moraes
Republicamos aqui o “Que Fazer?” da Revista Revolução Cultural “O populismo funerário de Cláudio Castro”.
As imagens no dia seguinte à megaoperação policial comandada pela polícia de Cláudio Castro, que resultou na morte de mais de 130 pessoas, são impressionantes. Mais de setenta corpos resgatados pelos próprios moradores estirados em uma praça, muitos deles com sinais de execução, como tiros na nuca, e torturas. A escala da matança é inédita: em semanas de cerco à Venezuela, as forças militares dos Estados Unidos executaram cerca de 50 pessoas no Caribe. Num único dia, a Polícia Militar do Rio assassinou bem mais do que o dobro em uma única localidade.
É preciso que se diga sem rodeios: não se trata de uma guerra, porque não há da parte do oponente, isto é, o Comando Vermelho, nenhum projeto político ou nacional independente. Na verdade, o tráfico de drogas é um negócio bilionário transnacional, cujos maiores agentes e beneficiários são magnatas posicionados no cume do poder político e econômico. É ridículo supor que ele possa ser operado por jovens de origem pobre e escassa instrução, sitiados em favelas. Se assim fosse, o Brasil, que multiplicou sua população carcerária nos últimos anos e coleciona índices sem paralelo no mundo de execuções extrajudiciais, já teria erradicado o negócio da droga. Na verdade, o que se pratica nos morros é o comércio varejista, a ponta de uma longa cadeia que não poderia se manter nem um dia sequer sem o envolvimento das altas patentes militares, responsáveis, ao fim e ao cabo, pelo patrulhamento das fronteiras e do espaço aéreo. De sorte que o dito combate ao tráfico não passa de um álibi para o cometimento de crimes oficiais e para a permanência de um estado de exceção contra milhões de trabalhadores que habitam as favelas e o seu entorno.
O que ocorreu ontem no Rio de Janeiro foi uma chacina que vitimou fatalmente mais de cem pessoas e impactou direta ou indiretamente os doze milhões de moradores da região metropolitana, que ficaram privados do transporte público para voltar para casa, que tiveram as suas aulas ou de seus filhos suspensas, que conviveram com boatos e alarmes durante todo o dia. Foi uma ação de terrorismo de Estado, cujo alvo principal foi a população civil, já carente de recursos básicos, que mora nas favelas convertidas em teatro de operação. Se se quiser falar em guerra, ela é simplesmente a guerra das forças policiais contra os próprios brasileiros pobres.

Do ponto de vista operacional, as polícias, embora deixem um rastro de cadáveres para trás, fracassaram. O principal alvo da sua mobilização, o membro do CV Doca, não foi capturado e de fato nada mudou nas localidades dessangradas. A miséria, a falta de perspectivas e o próprio ódio contra as atrocidades policiais já possibilitam que os postos vagos pela carnificina de ontem sejam rapidamente preenchidos por outros jovens pobres e majoritariamente negros. A imagem dos corpos estirados repercute no mundo inteiro. Ocorre que não há nada de operacional nesta abordagem. Ela, na verdade, tem um propósito político claro: Cláudio Castro busca trocar sangue por votos, encurralar o governo federal e, quiçá, se cacifar como um nome do bolsonarismo para as eleições presidenciais, num momento de vácuo de liderança deste campo. Todavia, ele próprio não passa de um politiqueiro reacionário e nacionalmente inexpressivo, sem estofo para brigar nesta esfera. Aqui, é preciso ver o episódio em dois tempos: no curto, fracasso da operação e desgaste do governador; no médio e longo, um aprofundamento da repressão contra os pobres e os dissidentes, seguindo uma tendência mundial inaugurada em Gaza.
Aos movimentos populares, cabe intensificar a denúncia do terrorismo de Estado, das chacinas policiais e da demagogia de um Estado de direito que não passa de uma democracia seletiva, da qual estão excluídos milhões de trabalhadores pobres da cidade e do campo. É claro que haverá uma opinião pública que defenda a barbárie e é preciso fazer o enfrentamento político a esta corrente, em cada local de estudo e de trabalho. De fato, o populismo funerário é suprapartidário no Brasil, ele antecede (e de algum modo criou) o bolsonarismo e sobreviverá a ele. Se o governo federal decretar uma Garantia de Lei e Ordem (GLO) no Rio, como Lula e Dilma fizeram em outras ocasiões, apenas se acumpliciará com o prosseguimento do massacre. Também é necessário, claro, prestar solidariedade ativa às vítimas. Aliás, onde estão as “sacrossantas instituições democráticas”, como o Ministério Público e o Judiciário, que jamais puniram qualquer governador do Rio pelas chacinas sucessivas que assolam a sua história? Eventualmente, políticos são presos por corrupção somente, uma das tantas provas de que nosso passado escravista ecoa na persistente primazia do direito de patrimônio sobre o direito à vida.
Finalmente, essa situação dramática, mas também a crescente resistência dos trabalhadores, inclusive na sua auto-organização para resgatar as vítimas e se protegerem das brutalidades policiais, reforçam não só a possibilidade mas também a necessidade de exercitar formas de autodefesa popular em áreas urbanas. No esteio da crise mundial e da onda de manifestações que se desatam em vários continentes e países, amadurece o futuro levantamento popular no Brasil. Tirar todas as lições dessas ações genocidas, tanto do seu método repressivo como da resistência popular, em grande parte espontânea, que se opõe a elas, é condição para levar a luta o mais longe possível quando o momento se apresente. A conta dos algozes do povo só aumenta, chegará a hora dela ser cobrada.