
Foto: Cristiano Mariz
Comitê Pró-Revista
19 de fevereiro de 2025
O oferecimento da denúncia da Procuradoria Geral da República (PGR) contra Bolsonaro por chefiar os planos para realizar um golpe de Estado em 2022 coincide com a pior avaliação do governo Lula desde o início. Conjecturas à parte – até que ponto estas questões são conscientemente decididas nos bastidores –, a relação entre uma e outra parece óbvia: o fracasso do governo Lula até aqui, refém de um Congresso e de uma “base aliada” corruptos e reacionários, não será revertido por uma eventual condenação de Bolsonaro, pois o bolsonarismo se tornou fenômeno duradouro na política brasileira, que só pode ser derrotado através de ampla mobilização popular. A curto prazo, inclusive, o resultado deve ser o fortalecimento do ato convocado pela extrema-direita para o próximo 16 de março e da versão que quer apresentar o “mito” como um perseguido político.
Numa palavra, se às vésperas de 1964 o governo Jango e vários dos seus apoiadores (incluído o PC Brasileiro de Prestes) julgavam que o “esquema militar” legalista seria suficiente para enquadrar os militares golpistas, o atual governo, com leves tinturas social-democratas, e uma essência direitista, parece jogar todas as fichas no “esquema jurídico”, que condene Bolsonaro e o mantenha fora da disputa. Como toda comparação, esta esbarra em limites muito estreitos, uma vez que o governo Jango também mobilizou as massas populares em defesa das reformas de base, enquanto Lula rechaça hoje como sempre qualquer papel do movimento de massas que não seja aplaudi-lo de tempos em tempos; e os golpistas representam agora um autêntico movimento de massas no Brasil, que ultrapassa não só as fronteiras como o controle direto da cúpula das Forças Armadas, diversamente do ocorrido naquele fatídico 31 de março. Na verdade, o caráter predominantemente civil da extrema-direita brasileira é o que constitui o ineditismo da situação atual. Diferenças postas, este esquema é tão falho como aquele, pois já agora, à medida que o governo sangra, começam a aparecer dissensões no STF sobre a condução do inquérito por Alexandre de Moraes, que submeteu a denúncia contra Bolsonaro à turma, composta apenas por cinco ministros, e não ao plenário, onde todos poderiam se manifestar (e posar para os holofotes) livremente. Ao contrário de ser “independente”, o Judiciário é ao fim e ao cabo tão volátil aos ventos políticos quanto qualquer outro dos “poderes”, como prova de modo taxativo a própria reabilitação de Lula há poucos anos atrás.
De fato, a denúncia contra Bolsonaro, se encontrasse um ambiente de mobilização popular contra o golpismo e de melhorias efetivas do bem-estar do povo, poderia acelerar o processo de divisão no campo da extrema-direita e favorecer o surgimento de um direitista moderado, como tanto querem não só setores da imprensa burguesa como “preveem” por aí certos escrevedores que confundem análise com fúteis exercícios de futurologia, de todo inócuos para lidar com o presente. Ao contrário, coincidindo com uma diferença colossal entre os 24% que declaram o atual governo bom ou ótimo e 41% que o declaram ruim ou péssimo, ela no mínimo é indiferente e pode até chegar a dar novo fôlego político a Bolsonaro, uma vez que para os seus apoiadores se trata apenas de uma requentada perseguição, e foram justamente os que elegeram Lula em 2022 os que puxaram a elevação da sua reprovação. Ou seja, parece estar em marcha um processo de reagrupação nas fileiras da extrema-direita e de desagregação na frente arreganhada (ampla a esta altura seria eufemismo) que elegeu Lula contra Bolsonaro, quadro este que não poderá ser alterado por nenhum espetáculo jurídico. Em última instância, que Bolsonaro pretendia dar um golpe é coisa já suficientemente repisada para se pensar que bastaria para alterar o quadro como um todo. Nesta situação, qualquer candidato indicado por Bolsonaro – incluindo a muito provável alternativa de ele ou ela serem escolhidos dentro da família – seria por definição um representante da extrema-direita e tenderia a ser bastante competitivo.
E se, de fato, durante o desgoverno do capitão do mato, apesar de todas as barbaridades, ninguém poderia acusá-lo de enganar seus eleitores, o mesmo não se pode dizer de Lula, que prometeu picanha aos trabalhadores, que hoje mal conseguem comprar o café da manhã, literalmente. Os alardeados crescimentos do PIB (puxado pelo agronegócio, ou seja, custeado pelo massacre dos povos originários e destruição ambiental) e baixo desemprego (amplamente maquiado pela informalidade e toda sorte de trabalhos precários) não têm sido capazes de saciar ninguém, até porque as pessoas não se alimentam só de comida, mas precisam também de uma visão coerente de mundo e perspectivas. Estas, são dadas atualmente nas igrejas, nos incentivo à lei da selva na forma de “empreendedorismo”, na pregação em defesa da lei e da ordem. Recentemente, pesquisa Atlas/Intel registrou o amplo rechaço popular a sete de doze instituições apresentadas, mas também concluiu que as únicas que obtiveram uma avaliação positiva foram as polícias Federal, Civil e Militar, além da Igreja Católica e do STF. Ou seja, na ausência de ações e também de uma ampla mobilização política que partam das forças efetivamente de esquerda, podem continuar a ser os defensores de um Estado fortemente punitivo de um lado e economicamente neoliberal de outro os que consigam vocalizar a insatisfação da maioria dos brasileiros. E se a situação internacional é o pano de fundo – pois o mesmo se passa em uma série de países –, a explicação principal para este fenômeno deve ser buscada em suas raízes específicas brasileiras. Não deixa de ser bastante sintomático o fato de que, justamente neste contexto, coincidindo o governo Lula com o sexagésimo aniversário do golpe militar de 64, este tenha suspendido à época qualquer ato oficial sobre o tema. Isto é mais do que oportunismo político; é mesmo uma visão prática obtusa. Aqui, cabe acrescentar que mesmo que “Ainda estou aqui” seja um belo filme, e tenha atraído uma grande quantidade de espectadores, dado o nosso contexto, ele é largamente insuficiente para preencher a lacuna de um autêntico acerto de contas, capaz de comover milhões de brasileiros pobres, que não frequentam os cinemas, sobre as infâmias perpetradas pelos militares.
Seja como for, é cedo para falar de 2026, pois num país de capitalismo burocrático como o nosso é enorme o papel da máquina estatal sobre a economia e a política, de modo que o governo sempre é um forte candidato. O próprio Bolsonaro, que figurou quase dois anos inteiros mais de vinte pontos atrás de Lula, usou e abusou de instrumentos oficiais e quase virou a eleição em 2022, terminando menos de dois pontos atrás. Mas o mais importante é que ainda há um 2025 inteiro, e não se pode descartar que o instável equilíbrio político e a precária “normalidade institucional” costurados nos corredores palacianos sejam abalados por um fator que tanto um campo como o outro desprezam, qual seja, a entrada em cena do protesto popular independente, já que à insatisfação difusa não faltam gatilhos de opressão bastante concretos para se somarem. Uma vez que isto ocorra, acusar o povo sublevado de “fascista”, como provavelmente faria o atual governo e os seus porta-vozes oficiosos, seria o equivalente a empurrá-lo de fato para este caminho (na verdade, já é o que fazem, quando buscam assustar qualquer mobilização independente com o fantasma golpista, o que só serve a desmobilizar o campo popular, pois a extrema-direita está em mobilização permanente há dez anos). Às forças revolucionárias e populares, ao contrário, se apresentaria a tarefa de combater em duas frentes, contra a repressão policial e a agitação fascista, combatê-las em todos os lugares e por todos os meios, mas sobretudo nas ruas.