A Operação deflagrada na última semana pela Polícia Federal, que terminou com o indiciamento de Bolsonaro, Augusto Heleno, Braga Netto e vários outros oficiais superiores das Forças Armadas, acrescentou novos contornos ao que já era essencialmente claro desde há muito: a “democracia brasileira”, longe de sólida, como querem crer os analistas oficiosos, esteve a um passo da derrocada. Desse certo a intentona golpista, teríamos uma junta militar à frente do país, para implantar um regime político terrorista e um regime econômico-social ferozmente antipovo e entreguista.
Segundo a investigação, o general de brigada Mário Fernandes, um “kid preto”(como se chamam os integrantes das Forças Especiais do Exército reacionário, especializados em contrainsurgência), encabeçaria o plano tático-operacional do golpe, fazendo levantamentos e articulações que visariam “quebrar cristais” para “neutralizar” a chapa Lula/Alckmin, o que incluiria a prisão ou assassinato de Alexandre de Moraes, ministro do STF e então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Nos diálogos interceptados, fica clara a ligação entre a conspiração palaciana e os movimentos de rua à frente dos quarteis, que nada tinham de espontâneos, ao contrário do que pretendiam alguns incautos. Os tais “manifestantes”, tudo indica, receberam, além de financiamento, instrução para fazer os atentados em Brasília (15 de dezembro e 8 de janeiro) e a série de cortes de rodovias imediatamente após a eleição. Também fica claro que Mário Fernandes é tão somente um “homem de ação” – ainda que uma ação frustrada –, e que a direção ideológica e política do golpe envolvia mais pessoas, inclusive em condições de mandar “abortar a missão” já deflagrada de captura de Moraes, em meados de dezembro.
Dois fatores foram decisivos para a não concretização da quartelada: externamente, a insistência com que diferentes órgãos dos Estados Unidos (incluindo Departamento de Estado, CIA e Comando Sul das Forças Armadas) excluíram qualquer possibilidade de reconhecer o eventual novo governo golpista, o que nos faz pensar que eles já tinham acesso aos detalhes da conspiração bem mais cedo do que a polícia local, mesmo em tempo real; internamente, a certeza de que haveria resistência popular ao golpe e o medo de que isso transbordasse para um cenário do que os militares chamam de “caos social” e de uma guerra civil. Querer ver na ingerência ianque fator exclusivo de detenção do golpe tentado é um erro profundo, que não vê o papel das massas populares e das contradições de classe internas – vastos setores da grande burguesia e mesmo do latifúndio seriam afetados por eventuais sanções internacionais –, que constitui inclusive uma das razões pelas quais os imperialistas norte-americanos desautorizaram a conspirata, por mais identidade que tivessem com o plano econômico dos golpistas.
É importante registrar que o fato de o governo eleito ter logo corrido para compor com o chamado “centrão”, bem como para nomear direitistas de quatro costados para ministérios chaves (como o próprio José Múcio, na Defesa), também influenciou na legitimação da sua eleição pelo núcleo duro das classes dominantes.
Também resta claro que qualquer “teoria” que veja nas Forças Armadas um estamento monolítico e acima das demais classes e contradições de classe, é completamente errada. Há, é verdade, situações específicas em que elas ou algum seu representante direto se “autonomizam” em relação às demais classes sociais (Marx estuda profundamente isso sob o nome de “bonapartismo”), mas isto não ocorre o tempo todo. Via de regra, as lutas de frações repercutem, como não poderiam deixar de repercutir, no Alto Comando, como deixa claro o próprio Mário Fernandes, ao dizer que no seio deste “cinco são contra [o golpe], três querem muito e os demais [7], zona de conforto”. Ou seja, havia, na verdade, estreita maioria contrária, e uma enorme quantidade de centristas que penderiam para onde o vento soprasse. Tratou-se muito mais de correlação de forças do que de qualquer respeito à legalidade, como querem pintar alguns criadores de realidades paralelas na imprensa liberal. Segundo indicam as próprias investigações, um comandante de força, o almirante Garnier, da Marinha, se dispôs a lançar suas tropas no golpe.
Seja como for, a operação atual da Polícia Federal parece se relacionar com a eleição de Trump – intencionalmente deflagrada antes da sua posse – e o avanço da PEC da anistia para os golpistas na Câmara, dois movimentos que poderiam fortalecer a extrema-direita e o próprio Bolsonaro para 2026. É fato que este sofreu um golpe duro e provavelmente teve selado seu destino de inelegibilidade e prisão. A grande questão é que não se pode erradicar um movimento golpista, fortemente enraizado na sociedade e com capacidade de mobilização, contando para isso com o próprio aparelho de repressão estatal. A história já provou que tais dispositivos policiais e militares legalistas só funcionam até certo ponto, pois expressam a divisão e a vacilação próprias da burguesia. Em 1954, com o suicídio de Vargas, adiou-se o golpe por dez anos. Numa das mensagens, Mário Fernandes diz: “Vamos esperar mais dez anos?”. A cabeça da hidra segue intacta – as forças armadas são congenitamente golpistas no Brasil, pois além do papel genérico de medula do Estado, comum a todos os países, mesmo os mais democráticos, se consideram tutoras da república –, assim como a gestação de novas crises econômicas e políticas, inevitáveis enquanto perdure o capitalismo burocrático que extorque as massas populares e concentra renda como ocorre em poucos países do mundo.
É preciso elevar a mobilização popular; despertar os operários, camponeses, intelectuais, a juventude e os pobres de modo geral na luta em defesa dos seus direitos mais sentidos, forma eficaz de vaciná-los contra o canto da sereia do fascismo, que propõe uma solução “dura e rápida” para seus problemas imediatos, quando de fato a implementação de seu programa econômico só faria agravar estes problemas. Neste sentido, independentemente da limitação dos seus proponentes, é positiva a mobilização contra a escala 6×1, pois além de ser uma pauta democrática mínima, conseguiu penetrar mesmo entre setores populares que têm sido mobilizados pela extrema-direita. A adesão de alguns de seus parlamentares a esta pauta se deve ao fato de que ela expõe de modo concreto a contradição entre o seu discurso populista e os interesses que realmente representam, que são, em suma, do grande capital e do latifúndio. Do mesmo modo, a luta contra a privatização das escolas em São Paulo, contra o já anunciado corte de gastos sociais do governo Lula, em defesa de terra e moradia nos quatro cantos do país, enfim, toda e qualquer oportunidade devem ser aproveitadas para elevar a capacidade de intervenção dos setores classistas e combativos, tanto no sentido da sua construção junto às massas como para a formação de frentes consequentemente antifascistas, que vinculem a mobilização contra o golpismo e o militarismo de extrema-direita (que inclui a luta contra a crescente violência policial) com os direitos efetivos dos trabalhadores. Seria uma tragédia que a burguesia liberal traidora e seus acólitos oportunistas seguissem a se apresentar como expoentes da luta contra o fascismo, quando o que fazem na prática é aplicar uma limitada política de apaziguamento.
Dessa mobilização depende que tal golpe não tenha sido apenas temporariamente adiado; e também de que, no futuro, se concretizado, possa encontrar o que não ocorreu em 64: autêntica e ferrenha resistência. Para os democratas e revolucionários, a consigna é: mobilização permanente!
Novo MEPR – 25 de novembro de 2024.
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